quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Testemunho missão retirado do Grupo Missão Mundo





 "Mártir Cipriano"



"A chegada às 12:13h ao Instituto Agro-Pecuário "Mártir Cipriano", Nacuxa - Mossuril, no distrito de Nacala, no norte de Moçambique aconteceu no passado dia 8. A vontade de chegar ali era imensa, apenas comparável ao espaço geográfico de Moçambique, país que nos acolheu durante um mês de Agosto. Deixámos para trás Maputo, Manjacaze, Maxixe, Murraça, que nos acolheram de alma e coração, só possível pelo coração de Maria, na presença das pessoas que nos foram acolhendo. A ânsia de chegar ao destino foi interrompida pela avaria do carro, após a passagem pela nova ponte que se estendeu para passarmos o rio Zambeze, que separa o norte e o sul do país, abrangendo duas províncias que partilham os vales deste rio: Sofala (Caia), situada a sul do rio e Zambézia, a norte. À medida que o camião do Sr. Nino nos rebocava para Nicoadala, íamos ficando como a menina Isabelinha - mais leves e pequeninas para podermos voar, refreando o ímpeto de controle sobre tudo - do caminho, do tempo de chegada à missão, dos objectivos traçados, inclusive o controle sobre o próprio carro. Fomos despindo o estatuto de observadoras e vestindo o de observadas pelos olhos curiosos e atentos que seguiam o nosso movimento lento e dependente, ao longo do caminho. Era o camião que nos conduzia, éramos apenas instrumento do Senhor, era ele que nos guiava!, uma sensação de que o senhor caminhava connosco, e também todas as Irmãs, e o povo que caminhava ao longo das estradas, e as pessoas que nos ajudaram em todas as situações juntaram-se a nós e viajaram connosco no nosso coração. Foi uma das presença mais fortes que vivenciamos em toda a viagem. As noites em Quelimane eram longas, pelos barulhos dos animais, uma verdadeira sinfonia - os galos, as "tôu fraca, tôu fraca", os pernilonga. O pulsar da natureza e os rituais das idas à oficina mantinham a cadência do despertar do dia bem cedinho. No dia 7 acordámos com os olhos fitados em Deus, cada uma fez a sua oração, lado a lado, sem palavras, pois sabíamos que o Sr. Kinkas estaria a fazer o primeiro teste ao doente após a cirurgia profunda. Seria hoje a partida? Sim regressámos ao caminho, pelas montanhas, e com o testemunho do povo que continua a caminhar sem parar, parecíamos um homem sem esperança que ao retomar da esperança, retornou ao caminho da missão. A viagem até à missão de Nacuxa foi Providencial e a avaria do carro também, pois foi o tempo que precisávamos para fortalecer o sentido da missão e de união entre nós - a Tassy, a Rita e a Sílvia, Irmãs Concepcionistas ao Serviço dos Pobres; a Carol, leiga consagrada da Aliança de Misericórdia Imaculada do Espírito Santo; e a Ana Margarida, leiga do Grupo Missão Mundo, pessoas de três grupos diferentes. Aquele tempo foi dedicado a escutar os apelos, a rezar os desafios e a visitar o nosso doente (o carro). Nessa noite ficámos na casa das Irmãs Mercedárias, em Alto Muloque, percebi que continuávamos a entrar ainda mais fundo nas próprias fronteiras interiores, para podermos voar mais alto. Chegámos entre o rápido cair do dia e o levantar da noite escura, onde não estavam à nossa espera, mas os braços abertos do acolhimento e a partilha do pedaço de pão encheram a alma, o testemunho da simplicidade de vida daquelas duas Irmãs é qualquer coisa que jamais esquecerei. Saímos às 5h da casa das Irmãs com o cansaço das pernas entorpecidas, poucas palavras. Não havia meio de chegar ao destino. Passámos a barragem de Nacala, mas nunca mais chegava a indicação do desvio para Nacuxa.

Finalmente, uma estrada de terra batida levou-nos durante 15Km até à Terra Prometida. Ali as famílias povoam os caminhos, entre as casas circulares de matope com chapéus de palha e as sombras das mangueiras, as crianças espreitam e desaparecem no caminho, algumas acenam timidamente a sorrir, outras fogem com medo. O povo Macua descansa debaixo das sombras das árvores, como se sempre estivesse estado ali à nossa espera para nos acolher. Começo a sentir que estou a chegar a casa, ao pé da minha família, que sempre lá está de braços abertos para aquele abraço, uma sensação muito forte que é abençoada pela chuva do céu. A missão do Mártir Cipriano é um pequeno mundo à volta de muitos mundos e onde a vida das emoções do grupo capulana se foi transformando cada dia mais e mais até chegar ao silêncio. O Cipriano era um jovem catequista que foi morto há 25 anos, mártir da caridade que foi capaz de dar a vida pelo outro, uma verdadeira testemunha de coragem. A missão de Nacuxa é um centro comunitário com diversas valências. Um Instituto Técnico-profissional que prepara cerca de 390 técnicos agrícolas, entre o 8.º e o 12.º ano, e que inclui área administrativa, salas de estudo, dois laboratórios de química, uma sala de informática e uma biblioteca. Um Lar masculino, que acolhe internamente cerca de 160 rapazes; e um Lar feminino, que alberga cerca de 70 raparigas. Uma Escola Primária Completa para os mais pequenos, cerca de 1000 crianças e o Centro de Saúde. À missão reportam 16 comunidades cristãs, que para as imaginar pode servir a imagem das Comunidades de S. Paulo. Esta missão é da responsabilidade dos Padres Vicentinos, na figura do Pe. Eugénio e do casal missionário, a Mirta, da Bolívia, e o Manolo, de Espanha. No mês de Agosto a missão conta também com a presença de duas leigas espanholas e agora nós - Grupo da "Capulana" - duas portuguesas, duas moçambicanas e uma brasileira.

No dia da chegada visitámos a zona das machambas (hortas), onde as plantações de milho de regadio são a grande inovação por estes lados. Ao segundo dia apresentámo-nos àquele povo macua, durante a missa de domingo da comunidade de Nacuxa, que não há palavras para a descrever a magia do som, a alegria dos rostos por estarmos aqui; o olhar atento como o das crianças e os silêncios da escuta curiosa. A primeira pergunta que os jovens da missão nos fizeram foi: vieram para sempre? As actividades do terceiro dia foram repartidas entre a presença na escola e junto dos professores e a visita ao Bispo, o D. Granjane, em Nacala.

No quarto dia, encaminhámo-nos para o Centro de Saúde da Missão, projecto financiado pelo município de Andaluzia, em Espanha, para reunir com os técnicos de saúde. Ali nascem cerca de quatro crianças por dia e morrem cerca de duas por semana. As condições do local!, pois não dá para descrever o que quase não existe. As mulheres são um colosso, pois têm os seus filhos sem qualquer alívio de dor, conta a sorte do momento e a fé que tudo vai correr bem. O hospital mais perto fica distante e não existe ambulância. As disparidades dos meios e dos recursos entre África e a Europa fizeram sentir-se mais fortes entre aquelas paredes, no olhar da jovem mãe, que dava à luz o seu primeiro filho entre o medo, a carência, a ausência de esperança para a sua própria vida e a do seu filho. Senti-me ridícula no meio de toda a disparidade ao pensar no meu saquinho de medicamentos guardado no fundo da mala, para as alergias, para as picadas de mosquito, para a constipação. O povo macua é tímido no olhar e nos gestos, quase que a pedir perdão por existir, baixando os olhos quando passam por nós, ao mesmo tempo quanta dignidade no caminhar, quanta dignidade! Uma pureza a todos os níveis...se tivesse que eleger uma palavra para esta terra seria a fertilidade de tudo: de afectos, de crianças, da terra, das mulheres, de tempo, de espaço, de fome, de disparidades, de paradoxos. Tinha imaginado muita coisa e até sabia que havia fome, andavam descalços, não havia muitos meios, mas ao viver este tempo neste local tudo ganhou outro sentido. Chegou também o dia de visitar as comunidades Cristãs. Comunidade de Munlan - Sta. Filomena, bem próxima do centro de Nacuxa, mas ao mesmo tempo isolada e excluída no meio do povo muçulmano. Conta com a presença de cerca de 35 pessoas muito jovens, distribuídas por 6/7 casas, em famílias de 5/6 pessoas. Comunidade de Nacuxupa - S. Paulo, receberam-nos cerca de 11 pessoas, na sua maioria homens, apenas duas mulheres. Comunidade de Malassa, toda a aldeia parou para nos receber ao som de cânticos e de alegria. Esta família alargada é constituída na sua maioria por vientes muito jovens, migrantes ou estrangeiros, como lhes chamam. Na comunidade de Nauripé, receberam-nos as famílias, homens e mulheres apresentaram-se, um a um, onde a presença de mais velhos se fez sentir de alguma forma, finalmente encontrei alguns idosos, que procurei ao longo da viagem até Nacala, mas que ainda não tinha sentido a presença - as mamas e os papás, como dizem.

O acolhimento nas comunidades, a importância da nossa presença naqueles lugares é qualquer coisa que também ainda não consigo descrever. A festa, a música, os cânticos, a comida que preparam no meio da falta que lhes faz e o simples gesto quando dizem "fiquem para beber água connosco". Assim, como os jovens da missão de Nacuxa, também as pessoas das comunidades perguntavam por quanto tempo vão ficar? E quando percebiam que estávamos para conhecer, partilhar e sentir a forma como os poderemos servir, perguntavam: quando regressam? A dádiva da partilha e da presença das comunidades junto do Grupo Capulana, foi surgindo cada vez mais forte num caldeirão de emoções de alegria, impotência, de raiva, de amor, de gratidão, de... de....que começou lentamente a dar lugar ao silêncio e depois as lágrimas. Está a ser muito forte dentro de mim e entre toda a equipa. Primeiro desformatar de tudo, para depois absorver as dádivas recebidas, sinto que o tempo de vida vivida não será suficiente para digerir o que sinto. As comunicações são difíceis, mas sinto a vossa presença em todos os momentos, "estamos juntos" como diz o povo Macua.
Beijinhos         

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